Neste novo artigo faço um retrospecto da trajetória recente das ONGs no país, para compreendermos como o setor foi se construindo até a chegada da crise da covid-19. boa leitura : )
O foco deste artigo é construir um retrospecto analítico da trajetória das organizações da sociedade civil, de modo a termos uma visão mais ampla e contextualizada que nos tragam luzes no momento complexo em que vivemos.
Ato 1 – anos 70-80
O centro de gravidade das então ONGs e movimentos sociais/ambientais era a negação:
- não somos governo (não-governamental)
- não visamos lucro (sem fins lucrativos)
Vale lembrar que o advento da sociedade civil no Brasil se dá em tempos de ditadura política, sendo necessário atuar (muitas vezes clandestinamente) para contrapor um Estado autoritário, torturador e sem visão socioambiental.
Deste contexto interno e inspirado no que acontecia fora do país (a partir do ‘maio de 1968’ e outros movimentos da contra-cultura) emergem com força agendas ambientais, sociais, defesa de direitos, fruto do esforço de movimentos sociais (e ambientalista) que ali lutavam por direitos civis .
A outra negação passava por evitar proximidade com o capital com empresas, com lucro, enfim, com a dimensão econômico-financeira.
Essa trincheira ideológica, como sabemos, tem reflexos até hoje na crônica dificuldade de muitas ONGs em lidar com a dimensão econômico financeira e daí, certa trava em se relacionar com o setor privado e com o campo emergente dos negócios de impacto social (saltando para os dias atuais).
Mas neste momento histórico (anos 70 – 80) era o voluntarismo e a mobilização social e política as formas de atuar. A militância era a tônica mais forte e tempos depois que a agenda da profissionalização do setor ganharia terreno. No movimento ambientalista, diversas ações de mobilização foram realizadas e ilustravam esse ‘modus operandi’ da época.
Ato 2 – final anos 80 – anos 90
Com o processo de abertura democrática e a Constituição de 1988 (além da Eco-92, do ECA, e outros marcos civis importantes) a sociedade civil começa a perceber que esses dois setores até então negados ou rechaçados (o Estado e as empresas) passam a ser peças indispensáveis nas engrenagens democráticas socioambientais e de conquista/implementação de direitos, ainda que com divergências entre esses atores.
O Estado precisava assumir seu papel e assegurar/implementar na prática sua função democrática e de bem estar social. Alocar orçamento em políticas públicas, assumir seu papel de fiscalização, esboçar caminhos de participação social, etc.
Muitos dizem hoje que a Constituição de 1988 olhou para o retrovisor ao incorporar como direitos pautas diversas que foram renegadas por décadas. Será?
Na outra ponta, as empresas passavam a encampar a tal da multissetorialidade da agenda socioambiental. Em outra palavras, o que antes era uma agenda da sociedade civil passa ser assumida por outros setores (Estado, empresas, etc)
Além de começarem e perceber que isso também se constituiria em diferencial competitivo
(criação do Ethos e do GIFE são exemplos desta questão), uma década depois esse debate desaguou na agenda da sustentabilidade com toda sua potência e limites.
Ainda era um preâmbulo desta agenda mas já significava algum avanço no Brasil que em 1972 defendeu na histórica Conferência de Estocolmo que os países industrializados trouxessem sua poluição pra cá.
Ato 3 – final anos 90 – anos 2000
De meados dos anos 90 pra cá como o então campo das ONGs acompanhou e atuou neste sentido?
Viu, de um lado, o Estado (a partir dos seus vários entes e poderes e de maneiras diferentes) assumir bem ou mal seu papel nesta agenda, além de mecanismos de fiscalização e controle que também emergirem com força.
Aqui cabe destacar o papel que o Ministério Público teve nesta jornada em prol da proteção ambiental, e também durante o governo Lula (2003-2010) de parte importante desta sociedade civil ser criticada por ter sido ‘cooptada’ pelo governo e de haver certo esvaziamento de movimentos sociais.
Do outro lado o campo das ONGs viu o setor privado ganhar protagonismo neste terreno saindo de uma posição de negação da agenda pra perceber diferencial competitivo com pitadas de maquiagem verde ou social (os conhecidos ‘washings’).
A mudança no engajamento destes 2 setores (Governo e Empresas) trouxe alguns dilemas para o campo da sociedade civil como veremos a seguir.
Ato 4 – dilemas recentes
Grosso modo, vejo 4 dilemas que o campo da sociedade civil se deparou a partir da diluição do seu protagonismo na agenda socioambiental:
- Ideológico
- Relacional
- Modus operandi
- Financiamento
Ideológico
Se parecia ficar cada vez mais claro que era necessário estabelecer relações com governos e empresas para um maior avanço destas agendas, como fazê-lo sem desconsiderar todo histórico ideológico e de lutas até aqui travado entre eles?
A depender da opção tomada isso poderia soar como se a organização estivesse se ‘vendendo’ ou sendo ‘capacho’ daquela empresa, ou como ‘correia de transmissão deste ou governo’? Esse dilema ideológico traz à tona a necessidade premente de revisão da própria missão da organização.
O que fazia sentido anos ou décadas atrás seguia fazendo sentido no novo contexto?
Até que ponto a organização (e sua governança) está realmente aberta à repensar sua ideologia?
Relacional
Decorre do dilema anterior o desdobramento do arco de relações institucionais e de parcerias que a organização tem ou deseja construir se havia num passado recente uma postura mais combativa e crítica face ao Estado e às empresas.
Como incorporar esses 2 setores na sua atuação? Confiar desconfiando? Ou seria o caso de seguir atuando apenas entre pares, ou seja, apenas entre ONGs camaradas?
Haveria lista cinza de marcas a serem evitadas? Haveria grupos políticos e espectros partidários a serem preteridos ou priorizados?
E como fica a estrutura do Estado com seu corpo de servidores e técnicos que permanece após os ciclos de mudanças de governo (de partidos)?
O dilema relacional traz a tona cenários muito mais complexos (o que hoje costumamos chamar de ‘muitos tons de cinza’) que passam a exigir das ONGs mais profissionalismos mais repertório ferramental
De modus operandi
Daí emerge esse dilema do modo de operar e modo de atuar em prol do alcance da missão institucional. Ocorre que com novos setores entrando no tabuleiro e ganhando protagonismo nas agenda socioambiental emergia a necessidade de lidar com novas linguagens, novas ferramentas, novas possibilidades, novas narrativas.
Como as organizações poderiam lidar com tudo isso?
Parte deste pacote de novidades já fazia emergir em muitas destas organizações reflexões difíceis:
ser fornecedor de uma grande empresa?
(até mesmo de alguma das quais a organização criticava num passado recente)
associar-se a marcas implicava em plena concordância de posicionamentos?
receber recursos públicos de um governo não-progressista?
De financiamento
Finalmente o dilema de financiamento que segue sendo possivelmente o principal desafio para as ONGs na atualidade.
O que antes era feito de forma meio artesanal e bastante voluntária (militante), ganha contornos mais complexos e novos olhares e alcances.
Sim, o tal fenômeno da profissionalização do setor. Já ouvir falar, certo?
Ele traz consigo uma conversa chata sobre orçamento pra bancar equipes, salários, estruturas, taxas administrativas, etc. Afinal, deveria (ou deve) ser o Estado o maior responsável por financiar a atuação das ONGs? (a atuação da sociedade civil como um todo)
Afinal as ONGs atuavam (atuam) onde o Estado não dava (dá) conta de atuar, mas isso não aumentaria a dependência e possível perda de autonomia destas ONGs? Elas não ficariam mais amarradas ao seu financiador? Mas esse financiador é um certo governo ou o erário público?
Notem que uma década depois o cenário que vemos é que muitas ONGs seguem altamente dependentes de fontes públicas de recursos para manterem sua atuação, a despeito do quadro muito complicado de crise fiscal que os governos atravessam no Brasil e fora também.
Hoje se escuta com certa facilidade que esse processo de profissionalização do terceiro setor já está finalizado, o que não é bem verdade.
Ato 5 – Pósfacio – tempos atuais
No contexto atual – de profissionalização em marcha de um lado, de crise de financiamento crônica do setor, de boom dos negócios de impacto social, de narrativas contrárias a atuação do setor (as ‘ONGs só atrapalham’), de empresas (via institutos, fundações ou não) jogando esse jogo sem precisar das ONGs, de mais competição entre ONGs, etc, nota-se uma quadro muito mais diverso, complexo e de múltiplos desafios com múltiplas possibilidades pela frente.
Em suma: um cenário muito mais complexo e desafiador, de maior pressão sobre as ONGs do que décadas atrás, de maior necessidade de lidarem com modelos de negócios, com estratégias diversificadas de geração de receita, adoção de ferramentas tecnológicas, etc. Se ‘só’ fossem esses desafios ‘pós-modernos’ já seriam por si só suficientemente complexos para as ONGs, mas somam-se à eles uma coleção de problemas socioambientais que nos acompanham há décadas (ou séculos), muitos que não foram resolvidos (não só pelas ONGs, mas pelo conjunto da sociedade) entre outros problemas que foram agravados ou escalados mais recentemente (ex: mudanças climáticas, riscos de pandemias, etc).
Como ser uma ONG (agora OSC) nos tempos atuais?
Se antes da covid-19 essa tarefa já estava longe de ser fácil, agora se tornou um pesadelo. Algumas ONGs têm conseguido crescer nesta crise, e ampliar suas operações. Mas será que esse quadro pode ser extrapolado a maioria do setor? Mesmo as ONGs que estão ‘crescendo’ neste momento, estão fazendo a qual custo? (burn-out das equipes é apenas um dos elementos que já se nota ‘na mesa’).
Organizações fechadas (no todo ou em parte), vulnerabilidades aumentando de forma assustadora, queda nos doadores e em recursos e uma crise socioeconômica sem precedentes pela frente. Embora haja alguns bilhões sendo mobilizados neste momento* em prol de ações solidárias, a distribuição deste recurso segue sendo um desafio e esbarrando na desigualdade e no desgaste de muitas OSCs para que essa distribuição alcance quem mais necessita la na ponta.
Talvez hoje os dilemas de atuar em parceria com o Estado e com empresas seja menos problemático do que no passado. Talvez siga sendo um dilema cotidiano pra muitas ONGs.
Talvez hoje o chavão ‘vender o almoço pra pagar a janta’ siga sendo uma dura realidade para o setor.
Enquanto algumas OSCs crescem e assumem um porte que as assemelham a grandes corporações, outras penam pra se profissionalizar, utam pra conquistar um lugar ao sol e pra manter-se vivas.
A mesma onda de profissionalização que alguns cravam já ter sido concluída se apresenta como obra ainda inacabada em boa parte do setor.
É neste cenário complexo que as OSCs já vinham tentando sobreviver muito antes da covid-19 se tornar um tsunami que recaiu sobre todos nós. Pra alguns, infelizmente, a crise atual tem sido utilizada como o bode expiatório da vez.
Afinal, adoramos uma causa externa de grandes proporções pra nos fazer aceitar nossa insignificância (incompetência ou inação)
ou
alimentar nossos sonhos utópicos de transformação a conta gotas, da clássica narrativa do beija flor fazendo a sua parte no incêndio da floresta. Essa cena não poderia ser mais adequada ao momento atual. Com apenas voluntarismo, boa vontade e certa ingenuidade não chegaremos longe no incêndio atual em que nos encontramos. Pra começar, precisamos aceitar que o incêndio é real e de grandes proporções, pra daí sim mobilizar todo o arsenal disponível para combatê-lo, de preferência grandes mangueiras, grandes equipamentos, robusto estoque de água e, talvez o principal, ampla capacidade de coordenação de esforços, o que costumamos chamar no setor de ‘atuação em rede’.
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* o Monitor das doações, iniciativa da ABCR, vem acompanhando diariamente o volume de doações: https://www.monitordasdoacoes.org.br/