Tema ‘onipresente’ na confluência entre o terceiro setor, a filantropia e o campo emergente de negócios de impacto, a inovação social parece viver o paradoxo de ‘nunca se falou tanto sobre’ mas, ao mesmo tempo, ‘será que estamos falando sobre a mesma coisa’?

O avanço do tema no Brasil deve sim ser comemorado e reflete a abertura de leque para se enxergar a complexidade do campo socioambiental à luz dos desafios urgentes e complexos atuais e com a incorporação de novas ferramentas de se endereçar estas questões. Aqui não nos referimos apenas a ferramentas ‘de mercado’, pois essa seria a seara do campo dos negócios de impacto.

Esse talvez seja o grande ‘lance’ que a inovação social nos apresenta, qual seja, a ampliação tanto do repertório de compreensão sobre as questões socioambientais (e a necessidade de se buscar mudanças sistêmicas) quanto da cocriação de ferramentas mais adequadas (mais éticas, participativas, sustentáveis e centradas nos seres humanos) para além das que temos/tínhamos disponíveis até então.

Como podemos perceber, o próprio arranjo que a inovação social nos ‘impõe’ já é, em si, aparentemente alinhado aos tempos complexos e acelerados em que vivemos.

Não será com uma única ferramenta, a partir do esforço de um único setor, nem atacando apenas os efeitos dos problemas sistêmicos que conseguiremos acionar a alavanca da inovação social de forma efetiva.

As sínteses mais comuns que procuram explicar o conceito de inovação social já são amplamente conhecidas[2] e temos nos deparado com um conceito meio ‘pasteurizado’ de inovação social. Uma destas sínteses mais comuns seria esta:

Uma solução inovadora para um problema social que seja mais efetiva, eficiente e sustentável na comparação com as outras opções de soluções já existentes, na ótica da sociedade (coletividade) e não dos indivíduos. Uma inovação social pode ser um produto, processo de produção ou tecnologia (bem como a inovação em geral), mas também pode ser um princípio, uma ideia, uma legislação, um movimento social, uma intervenção ou alguma combinação entre eles. (Stanford Social Innovation Review, Phills, Deiglmeier e Miller, 2008[3])

Se é verdade que esta explicação conceitual parece ter se tornado ‘carne de vaca’ na atualidade, ela pode explicar o fato de a inovação social ter se tornado um certo ‘selo’ que chancela determinadas práticas do campo socioambiental, sem que haja qualquer referência mais profunda com este conceito.

É como se eu nomeasse práticas que minha organização já faz há tempos como sendo de ‘inovação social’, pois o termo, de uns tempos para cá, parece ter se tornado cool. Nada contra a apropriação que o termo vem sofrendo por aí, aliás, isso pode servir com uma boa porta de entrada a uma reflexão mais profunda que o tema nos convida a fazer. Entretanto, apenas ‘colar o selo’ da inovação social em nossa organização ou projetos não nos torna ‘inovadores sociais’ de fato, considerando os conceitos complexos que o tema traz consigo.

É essa reflexão que entendemos que precisa ser feita. É este debate que precisamos fazer, de peito aberto e com profundidade. É em direção a este terreno que precisamos avançar.

Aquelas organizações que já avançaram em direção ao terreno dos negócios de impacto e já acreditam que estão plenamente operando a agenda da inovação social estão apenas na sua porta de entrada. Poderíamos dizer no jargão popular que o ‘buraco é mais embaixo’ na agenda da inovação social. É preciso mergulhos mais profundos.

E justamente esse tem sido um dos ‘problemas’ que a inovação social parece lidar. De um lado a disponibilidade de certo repertório conceitual (vide citação de Stanford) parece suprir a ânsia de profissionais e organizações afins ao tema de que já se sabe ‘muito bem obrigado’ o que inovação social é. Logo, todos já sabemos sobre o quê estamos falando e em qual terreno estamos pisando, e, portanto, já podemos nos considerar como sendo parte deste movimento da inovação social.

Ocorre que é justamente esta a armadilha em que nos encontramos e que temos dificuldade de perceber. A porta de entrada conceitual ao tema deveria ser encarada como um mero aperitivopara mergulhos mais profundos na real compreensão sobre o arcabouço conceitual que o tema traz consigo. Esse é um dos problemas, como citamos.

O tema é ainda percebido como sendo muito acadêmico e pouco prático, o que contribui para afastar atores mais distantes deste universo (acadêmico) em direção a compreensões mais profundas e densas sobre o tema. Essa vinculação mais rasa com o tema traz consigo outro problema, o de escolha de caminhos e ferramentas que tendem a ‘resolver’ apenas sintomas e não causas dos problemas socioambientais que seriam a matéria-prima da qualquer intervenção de inovação social. Lembremos que a inovação social nos provoca a atuar em direção a mudanças sistêmicas, ou seja, a atacar as raízes e causas dos problemas e não somente suas consequências e efeitos.

Ora, se a percepção sobre o tema é rasa e enviesada, logo, a adoção de estratégias para enfrentar este problema tende também a ser rasa. Por outro lado, se nos deparamos com um mar complexo de conceitos e um novelo difícil de ser destrinchado para compreensão, tendemos a nos afastar deste problema e a buscar simplificações que nos confortem e nos façam caminhar de forma mais prática e rápida. Não à toa o movimento de empreendedorismo social avança a passos largos e vem conquistando importantes avanços ao redor do globo no endereçamento de problemas socioambientais.

Outro problema que decorre daí é a compreensão de que o empreendedorismo social seria a única forma de se materializar a inovação social. Logo, ambos poderiam ser considerados como sinônimos[4]. O problema aqui não é apenas essa conclusão linear (não verdadeira), mas também o efeito ‘cortina de fumaça’ que ela traz ao se considerar que o empreendedorismo social já ‘dá conta’ dos inúmeros desafios que são percebidos a partir da lente da inovação social.

Esse tem sido um dos panos de fundo que podem explicar a controvérsia com que alguns movimentos sociais (coletivos, redes) mais próximos da filantropia comunitária, justiça social e economia solidária parecem ter com relação às agendas da inovação social e do empreendedorismo social. Não à toa esses grupos tendem a preferir se posicionar nestes temas a partir do conceito de ‘tecnologias sociais’. Sem entrar numa análise conceitual e acadêmica sobre estes conceitos e termos, nos parece mais estratégico neste momento concentrar a discussão mais no aprofundamento das questões socioambientais atuais (ou seja, no diagnóstico deste quadro) para também ser possível aprofundar as diferentes formas de se enfrentá-lo. Neste sentido, diferentes nomes podem ser escolhidos para atender a identificação dos diferentes grupos e organizações que estão neste terreno.

Daí a opção por não refletir sobre se o conceito de tecnologia social seria parte do conceito de inovação social (ou vice-versa) e qual seria o mais apropriado para nomear essa ‘história’. O importante aqui é demarcar que esse imbróglio conceitual é um dos desafios que permeiam o avanço da agenda de inovação social no Brasil, dentre outros. Evidentemente a academia tem condições de contribuir para elucidar e refletir essa questão junto ao campo.

O outro problema que o campo da inovação social parece se deparar é com relação ao arranjo deste ecossistema que, de um lado, é um mix entre os campos do terceiro setor, da filantropia e dos negócios de impacto, mas ao mesmo tempo, parece não ser de nenhum deles. Na prática seria como se este ecossistema de inovação social estivesse nas interfaces entre estes outros ecossistemas, mas acaba não sendo percebido por nenhum deles.

Daí a relevância de questionar porque não temos um ‘ecossistema de inovação social’ desenhado e implementado no Brasil? Porque as áreas afins ao tema (terceiro setor, negócios de impacto, filantropia) não se reconhecem como sendo parte de um ecossistema mais amplo, no caso, de inovação social? Porque ‘inovação social’ não se consolida como sendo o guarda-chuva sob o qual estas diversas estratégias e atores poderiam conviver e avançar?

São problemas demais se não correr atrás da maneira certa de solucionar[5]

Como podemos ver, são diversos os desafios que o campo da inovação social se depara no Brasil. O avanço crescente que o tema vem ganhando parece representar que está tudo ‘resolvido’, o que, como vimos, não reflete a realidade. Desafios conceituais, identitários, de ferramentas e de ecossistema se apresentam como um prato cheio de questões a serem trabalhadas para o efetivo avanço desta agenda em solo brasileiro.

Mesmo diante destas questões, a agenda vem avançando e há sinais positivos no radar. Desde 2014 assumimos a agenda da inovação social como uma das plataformas de atuação do Instituto Sabin e desde 2018 ela nos ‘engoliu’, tornando-se o eixo central de nossa atuação.

Aprendizados relevantes e muito ricos nos conduziram à fazer parte do Conselho Global da SIX (Social Innovation Exchange), uma rede global de inovação social que é, sem dúvida, uma das grandes referências sobre o tema. Ampliar repertórios e compreensões sobre uma agenda tão complexa e dinâmica quanto esta nos possibilita, ao menos, acompanhar as tendências globais sobre o tema e calibrar nosso radar de atuação, sem nos distanciarmos da nossa responsabilidade de fomentar o avanço desta agenda no Brasil, buscando atacar os diversos problemas aqui debatidos. Como podemos perceber, tarefa nada fácil.

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[1] Gerente Executivo do Instituto Sabin (www.institutosabin.org.br). Atualmente coordena a Rede Temática de Negócios de Impacto do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) em conjunto com o ICE. Membro do Conselho do Gife. É autor do livro “Reflexões contemporâneas sobre Investimento Social Privado”. [email protected]

[2] Já debatemos esse tema aqui: https://gife.org.br/inovacao-social-o-que-ha-embaixo-deste-guarda-chuva/

[3] Este seria o texto clássico que posicionou os contornos conceituais do tema globalmente: https://ssir.org/articles/entry/rediscovering_social_innovation#

[4] Já debatemos esse tema anteriormente: https://gife.org.br/inovacao-social-negocios-de-impacto/

[5] Música ‘Samba do lado’ – Chico Science e Nação Zumbi (1996), banda de rock de Recife que foi uma das fundadoras do movimento denominado ‘Manguebit’. Após o morte do seu líder, Chico Science, a banda seu carreira como Nação Zumbi (http://www.nacaozumbi.com.br)

 

*** Post originalmente postado em GIFE por  EM 

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