Em todos os setores da sociedade temos vivenciado tempos de transformação e de profundo questionamento dos modelos atuais vigentes frente a velocidade das mudanças, urgência e complexidade dos desafios sociais, ambientais, cidadãos e políticos atuais.
Representação política, modelo de família, modelos dos negócios, e diversos outros aspectos encontram-se em ‘cheque’ na atualidade. A filantropia, obviamente, não passa imune a este contexto, e vem procurando adensar reflexões que a permitam, de um lado, sintetizar um balanço dos principais legados da sua trajetória histórica e, de outro, dialogar com as críticas que tem recebido com vistas a reinventar-se.
É justamente sobre este segundo aspecto que pretendo construir algumas reflexões neste texto.
1. Inovação (social)
Por que institutos e fundações tem andando distantes das áreas de inovação das empresas?
Temos notado um ‘boom’ de aceleradoras e programas de inovação aberta nas empresas, pois elas já perceberam que é preciso repensar modelos de negócio e de receita, buscar novas verticais e novos clientes, e também promover melhorias incrementais no que já fazem.
Porque temos andando distantes destas iniciativas?
Não seria o caso de nos aproximarmos das áreas de inovação para, não só bebermos nesta fonte como também pautarmos a agenda da inovação social neste contexto?
Há muita inovação sendo estimulada e captada por estas áreas, entretanto, o drivesocioambiental anda pouco presente nestas reflexões. Algumas destas inovações tangenciam iniciativas ‘sustentáveis’, mas há uma avenida de oportunidades nesta confluência de áreas.
Nada melhor do que institutos e fundações para construir esta conexão, afinal, impacto social e ambiental positivo é um dos principais combustíveis que tem nos movimentado ao longo de toda a trajetória do ISP.
Já debatemos esse tema da inovação social em outros textos e temos notado um aumento no interesse de institutos e fundações nele[2].
2. Negócios de impacto
Uma das confluências da agenda da inovação social diz respeito ao campo das finanças sociais e negócios de impacto, globalmente denominado ‘impact investing’.
Ainda que seja uma agenda nova e emergente no radar de institutos e fundações, já parece haver certo consenso, no Brasil, de que nosso papel é o de fortalecer o ecossistema, apoiar organizações intermediárias (aceleradoras, incubadoras, avaliadoras, etc) e experimentar novos instrumentos para além da doação (por exemplo: empréstimo, dívida, etc).
Está claro também que nem todos os institutos e fundações se engajarão nesta agenda (por conta de diversas ‘travas’ e por opção estratégica institucional), mas ainda há muito espaço para que mais institutos e fundações “molhem os pés” nestas águas[3].
Como já discutimos anteriormente, o debate parece estar mais focado no ‘como’ (institutos e fundações podem se engajar neste tema) do que se eles podem ou não fazê-lo[4].
Vale ressaltar que há confluências ainda pouco exploradas nesta agenda, como por exemplo, a interface entre negócios de impacto periféricos, apoio a cooperativas e OSCs, com o campo da filantropia de justiça social, dentre várias outras abordagens ainda pouco exploradas.
3. Filantropia de justiça social
Organizações que militam com justiça social e comunitária têm provocado institutos e fundações corporativos a apoiar de forma direta estas iniciativas[5].
O que se tem provocado neste debate é a abertura para que o ISP amplie o grantmaking a causas, a organizações e redes que atuam nesta agenda (da justiça social e comunitária), assumindo caráter mais híbrido de atuação (combinando execução direta de programas com apoio direto a OSCs).
Tem-se falado muito sobre a importância de fortalecermos a democracia e a sociedade civil, e estes grupos tem, historicamente, trilhado este caminho. Portanto, a aproximação do ISP a esta agenda seria uma forma bastante efetiva de fortalecer esta dimensão.
4. O debate da escala
Escala parece ter se tornado, juntamente com impacto, uma commodity para quem atua no campo socioambiental. Do início desta década para cá é notável o quanto estes dois conceitos têm permeado as conversas, reflexões e intenções do ISP.
De fato, escalar iniciativas é fundamental diante da necessidade de ampliarmos o impacto positivo de nossos projetos e iniciativas. Disso, parece haver plena concordância.
Em geral, o debate da escala tem passado por duas frentes possíveis, não excludentes:
– o campo das políticas públicas
– a agenda dos negócios de impacto (em especial aqueles com viés tecnológico)
Embora parece haver suficiente convergência quanto à importância e necessidade da escala no campo socioambiental, o tema não está isento de divergências[6].
Portanto, institutos e fundações precisam debater esta questão sem cair, de um lado, na armadilha da obrigatoriedade da escala, nem, de outro, cristalizar-se em ‘projetos pilotos eternos’.
Os tempos atuais requerem justamente habilidade e ousadia para experimentarmos e testarmos novas formas de atuação, muitas delas híbridas, e tendo em vista aquelas que maximizem nosso impacto e escala.
5. Aliviando nossa bagagem
Institutos e fundações, em geral, trabalham com estruturas burocráticas e compliance de suas mantenedoras (ou próprias). Isso requer a existência de estruturas e equipes dedicadas a ‘controlar’ operações e a monitorar indicadores de gestão.
Temos visto o quanto a agenda de compliance veio pra ficar e o quanto ela ganha terreno dia a dia. O debate aqui não é o de deixa-lo de lado, mas sim o de como melhor incorporar esta dimensão sem que ela engesse ainda mais a operação de institutos e fundações. Já lidamos com desafios de governança que nos impõem um modus operandi que tende a ser mais ‘travado’ do que nossos vizinhos startups e negócios de impacto, por exemplo.
A questão fundamental é: como não nos tornarmos um “elefante branco” em nosso modelo de gestão e modo de operação?
O peso da nossa estrutura institucional e administrativa está diretamente relacionada ao nosso modelo de operação. A preferência histórica do ISP em executar projetos próprios traz consigo a necessidade de estruturas mais robustas para conduzir esta operação e também para controlá-la.
Caímos então numa espécie de círculo vicioso – maior execução própria requer necessidade de estruturas, equipes e energia para fazer essa roda girar, o que, consequentemente, faz com que nossas estruturas de backoffice sejam maiores.
Como podemos aliviar esta bagabem?
6. Atuação por temas?
Outra ‘cláusula pétrea’ do setor tem sido a opção do ISP em atuar por áreas temáticas, sendo educação a preferência ‘medalha de ouro’.
Muitos tem defendido que a especialização temática permite maior foco estratégico e, consequentemente, estratégias operacionais mais eficazes e maior impacto.
Há, portanto, temas mais consensuais e “sexys“ ao ISP (educação, juventude, desenvolvimento comunitário) e temas da “segunda divisão” (saúde, meio ambiente, esporte). Vale lembrar que a opção temática vem acompanhada, via de regra, com o recorte territorial.
Sem entrar na discussão de qual tema é mais relevante que outros, a provocação aqui é anterior: porque seguimos atuando por temas? Quais seriam outras formas de atuarmos? É possível questionar esta preferência de atuação?
Se os problemas socioambientais atuais são complexos e multidimensionais, não seria mais efetivo redesenharmos nossa estratégia de atuação a partir de um modelo mais complexo multi-temático e multistakeholder?
Ao invés de nos especializarmos dentro de um tema, experimentaríamos uma atuação intersetorial. Estamos preparados para isso?
Tempos de mudança ou de cristalizar o que já fazemos?
Como vimos, os tempos atuais vêm dando sinais para todos os setores de que é preciso reinventar a forma como diagnosticamos os problemas socioambientais e, sobretudo, como nos dispomos a enfrentá-los. Daí a importância que ‘escala’ e ‘impacto’ (dentre outros atributos) vêm ganhando em nosso setor.
Parece haver certo consenso de que institutos e fundações têm um potencial (ainda pouco explorado) de assumir maior risco e de ousar mais na experimentação de novas ferramentas que possam gerar impacto positivo em escala em nossa sociedade. Neste sentido o campo das políticas públicas e a agenda dos negócios de impacto entram em nossos radares com maior visibilidade.
Entretanto, o debate da ‘escala’ não pode ser encarado como sendo algo mandatório e que desconsidere diversas iniciativas mais ‘artesanais’ que promovem impacto positivo com maior profundidade. A calibragem das dimensões ‘escala’ e ‘profundidade’ parece ser um ‘bom problema’ que precisamos lidar em nosso cotidiano do ISP.
O advento da inovação aberta tem trazido à tona diversos questionamentos às grandes organizações, muitas das quais se tornaram ‘transatlânticos’ com práticas cristalizadas e estruturas mais ‘pesadas’ e mais travadas a experimentação de novos modelos de atuação.
Institutos e fundações corporativos lidam em maior ou menor grau com este contexto e vêm procurando identificar formas de experimentar modelos de atuação mais leves e dinâmicos que permitam endereçar suas missões institucionais e suas teorias de mudança, à luz do que startups e negócios de impacto tem tentado fazer.
Creio, portanto, que estamos passando por um momento ‘aberto para balanço’. De um lado, é preciso tirarmos um ‘extrato’ dos principais legados e aprendizados que o setor construiu ao longo da sua trajetória, mas sem nos fecharmos neste ‘balanço’. É preciso fazê-lo nos moldes dos tempos atuais – de forma aberta, colaborativa e transparente.
De outro lado, é preciso nos desapegarmos de parte destas práticas, sobretudo aquelas que não fazem mais sentido às urgências e à complexidade dos tempos atuais. Essas respostas são particulares para cada instituto e fundação, não havendo fórmulas prontas para o setor, embora alguns ainda a busquem.
Para alguns, será preciso redesenhar áreas e focos de atuação. Para outros, as áreas temáticas serão mantidas, mas a elas serão incorporadas novas ferramentas e novos modus operandi.
Enfim, para tempos complexos, as estratégias e ferramentas também devem ser complexas. Esse é um dos sinais dos tempos atuais. Pimenta nos olhos de alguns, refresco para outros.
[1] Gerente Executivo do Instituto Sabin (www.institutosabin.org.br). Atualmente coordena a Rede Temática de Negócios de Impacto do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) em conjunto com o ICE. Membro do Conselho do Gife. É autor do livro “Reflexões contemporâneas sobre Investimento Social Privado”. [email protected]
[2] https://gife.org.br/inovacao-social-o-que-ha-embaixo-deste-guarda-chuva/
[3] Duas publicações recentes procuram apresentar caminhos e experiências desta agenda para institutos e fundações: https://sinapse.gife.org.br/download/27910 e https://sinapse.gife.org.br/download/olhares-sobre-a-atuacao-do-investimento-social-privado-no-campo-de-negocios-de-impacto
[4] https://gife.org.br/institutos-e-fundacoes-no-campo-de-negocios-de-impacto/
[5] Também já debatemos este tema aqui: https://gife.org.br/por-que-executar-os-proprios-programas/
[6] Já abordei essa questão aqui: https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6435841810664353792