Artigo postado originalmente em redefilantropia.org.br

Na medida em que a agenda dos negócios de impacto social avança (daqui pra frente vou chamar de negócios sociais pra facilitar), algumas questões parecem ainda seguir na antessala desta discussão. Isso levanta um certo paradoxo. De um lado, esta agenda parece avançar a passos largos como sendo uma espécie de ‘cereja do bolo’ das soluções do mercado para ‘mudar o mundo’. Nesta mesma esteira encontramos temas correlatos (sustentabilidade, ESG, dentre outros), todos nos apresentando uma narrativa de que soluções de mercado, além do próprio mercado, são peças chave nesta grande arena da transformação socioambiental.

Nota-se, portanto, um copo meio cheio à frente, repleto de oportunidades para novas ‘soluções’ pautadas nesta tese da lógica do mercado para atacar problemas socioambientais. Em tempos de tamanha desinformação e opiniões rasas sobre tudo, me permito endossar que acredito que o mercado pode e deve ser ator ativo no enfrentamento destes problemas sem, no entanto, deixar também de reconhecer que ele próprio é causa de vários destes problemas e que ele tem seus interesses nesta arena, os quais, nem sempre, serão tão conciliáveis assim. Fechando esse parêntesis, volto às tais soluções que este mercado nos apresenta.

Elas são frequentemente apresentadas como ‘inovadoras’, deixando implícito que as soluções que já existiam antes deste boom eram, por sua vez, pouco inovadoras (pra algumas vozes, ultrapassadas). Sim, esse conflito de visões existe e segue presente nas entrelinhas desta discussão, e parece se retroalimentar numa fronteira não tão distante da falsa tese de uma sociedade civil que ‘atrapalha o desenvolvimento’, que ‘é vendida a interesses internacionais’, dentre outras narrativas lamentáveis, porém presentes na atualidade.

Nesta ampla arena da transformação socioambiental (sob a síntese marqueteira de ‘mudar o mundo’) há um conjunto de atores da sociedade civil que, há tempos, vêm aí atuando. Se são ou não inovadores, recomendo uma trincheira onde essa discussão ocorre de forma profícua: o campo da inovação social (sobretudo bebendo em referências europeias). A inovação social, diferente de como tentam nos vendê-la por aqui, procura demarcar que há, sempre houve e seguirá havendo muita inovação e criatividade nas soluções que a sociedade civil empreende, e que essas soluções não se resumem apenas aquelas que adotam a lógica de mercado. Tema para outro artigo.

Olhando para as duas vertentes aqui didaticamente apresentadas – de um lado as soluções de mercado e de outro, as organizações da sociedade civil – podemos inferir que ambos parecem convergir na mesma direção como ponto de chegada: a resolução destes problemas socioambientais tendo a formulação dos ODS como uma possível convergência de metas a serem perseguidas. Talvez possamos ter algum consentimento aqui.

Se possamos consentir que ambas vertentes comungam do mesmo ponto de chegada, nas suas práticas, caminhos e modos de atuar, encontraremos mais divergências do que convergências. Na prática, elas parecem seguir por trincheiras paralelas nesta ampla arena da transformação socioambiental. Algum esforço tem sido feito para propor pontes entre ambas, afinal, se ambas compartilham o ponto de chegada, podem também convergir, oportunamente, alguns caminhos ao longo desta jornada.

Na sequência listo algumas destas possíveis convergências não óbvias, assumindo que dentro delas há divergências e nuances que merecem ser consideradas e aprofundadas. Em se tratando de um debate que está em seus capítulos iniciais, os pontos a seguir podem servir como aperitivos para aguçar essa discussão.

Negócios sociais é parte da sociedade civil?

No campo dos negócios sociais costuma-se usar a expressão ‘setor 2,5’ para demarcar que ele tem um pouco de 3º setor, portanto, de sociedade civil, e um pouco de 2º setor, portanto, de mundo corporativo. A síntese é didática, mas uma constatação empírica da sua aplicação prática tem nos feito perceber que o centro de gravidade do setor 2,5 parece estar mais próximo do polo do 2º setor (do mundo das empresas) do que da sociedade civil. Daí decorre uma pergunta óbvia: desta forma o setor 2,5 pode ser considerado como parte do campo da sociedade civil? Além dessa questão, a pergunta de fundo que fica é: em que isso altera a vida dos atores que atuam na sociedade civil e vice-versa?

Assumir identidade de sociedade civil pode contribuir para reforçar o germe da justiça social que muitas vezes é latente no nascedouro de diversos negócios sociais, mas que, com seu crescimento (escala), essa essência pode ir sendo diluída. Afinal, reconectar e fortalecer vínculo com empreendedores(as) destes negócios não seria relevante para a sociedade civil e suas lutas históricas?

A doação (grantmaking) não cabe para os negócios sociais?

Se os negócios sociais precisam parar de pé financeiramente por meio da geração de receita própria com a venda de produtos e/ou serviços, uma conclusão precipitada seria de que eles não precisariam de recursos de doação. Convém lembrar, no entanto, que grande parte destes negócios sociais, ao longo de suas jornadas mais iniciais, precisam de todo tipo de apoio (inclusive doação) pra conseguirem sobreviver e superar o chamado ‘vale da morte’ desta dura jornada empreendedora. Logo, eles também precisam de capital paciente, de apoio institucional e apoio não financeiro que são tão caros e relevantes para as organizações da sociedade civil.

Além disso, convém lembrar que há uma considerável diversidade de tipos de negócios sociais, não sendo todos a mesma coisa. Chamo atenção para os empreendimentos de base comunitária, negócios periféricos, ONGs com modelo de negócios, cooperativas locais dentre outros modelos, os quais necessitam ainda mais deste tipo de apoio. Talvez estes sejam os tipos de negócios sociais que mais carregam consigo a noção identitária de sociedade civil.

Portanto, colocar todos os negócios sociais numa mesma régua é equivocado e pode gerar conclusões precipitadas. A questão central passa por: de qual tipo de negócios sociais estamos falando quando se discute a importância da doação? Reconhecendo que parte dos negócios sociais vai necessitar de recursos de doação, qual impacto para organizações da sociedade civil que dependem majoritariamente deste mesmo tipo de capital e apoio? Isso vai implicar em menor disponibilidade de recursos para estas organizações? Ambas vão pescar no mesmo aquário?

Por ser um negócio social, eles estariam mais distantes das bases da sociedade?

Não necessariamente. Não podemos avaliar os negócios sociais pelo tipo de CNPJ que possuem (lembrando que no Brasil não há ainda uma categoria jurídica específica para estas organizações. Na prática elas podem ter CNPJ de empresas, MEI, cooperativa ou associação). Portanto, ser um negócio social não estabelece, a priori, que essa iniciativa esteja mais próxima ou mais distante das bases da sociedade. Como vimos no tópico anterior, há tipos e tipos de negócios sociais, sendo uns teoricamente mais próximos às bases da sociedade. Os negócios de impacto periféricos, por exemplo, emergem justamente em territórios urbanos periféricos e trazem consigo, de modo geral, uma visão mais politizada de suas intervenções. Isso ajuda a ilustrar que mesmo dentro desta vertente há posicionamentos, nuances e leituras distintas da tal visão senso comum sobre as ‘soluções de mercado’ para enfrentar questões socioambientais. Esse exemplo mostra, inclusive, que há entre negócios sociais esforços de se hackear esse mesmo mercado a partir da adoção de suas ferramentas.

Trazendo uma discussão atual do campo político pra cá, seria sonhar demais pensarmos numa ‘frente ampla de transformação socioambiental’? Seria forçar demais a barra? Para alguns sim. Para outros não. Eu próprio não tenho uma opinião formada sobre isso, mas ainda assim percebo que há muitas pontes possíveis entre distintas organizações que seguem implementando iniciativas potentes de impacto socioambiental positivo. Se no fim do dia, todos buscamos a construção de um mundo mais justo, mais solidário, mais diverso, etc, ampliar a conexão e a colaboração entre os que atuam em trincheiras afins ou distantes desta ampla arena socioambiental nos permitiria alcançar transformações mais profundas e consistentes. Além disso, reduziríamos o espaço para espuma e para narrativas de washing. Em tempos de fake news, elas nadam de braçada e contribuem, infelizmente, para banalizar a síntese do ‘mudar o mundo’, que parece significar pouco na atualidade.

 

 

Fábio Deboni é diretor do Programa CAL-PSE, pela Aliança Biodiversity/CIAT e membro do Conselho do FunBEA (Fundo Brasileiro de Educação Ambiental). Engenheiro Agrônomo e mestre em recursos florestais pela ESALQ/USP. Foi gerente-executivo do Instituto Sabin de 2011 a 2020. Tem participado ativamente do engajamento de institutos e fundações no campo de negócios de impacto . É entusiasta do tema ‘inovação social’, escritor de diversos artigos e lançou seu quarto livro em 2020 – A epidemia do impacto – disponível em: https://fabiodeboni.com.br/livros/ Publica diariamente textos e artigos em seu blog: https://fabiodeboni.com.br/

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