me somo a tantos que
encaram essa expressão – ‘novo normal’
com bastante incômodo
ela ao menos
poderia trazer
ares realmente inovadores
e transformadores
em suas formulações
de projetos civilizatórios
este é o debate que me disponho
a construir
neste novo artigo
Em tempos de pandemia e de olho nos seus possíveis desdobramentos, governos, empresas e cidadãos têm se deparado com uma coleção de prognósticos e exercícios de futurologia na esteira do chamado ‘novo normal’. A cada momento surgem ‘receitas’ prontas do que seria um tal ‘novo normal’, ditando ‘novos’ comportamentos, em geral, pautados pela retomada do consumo e de um estilo de vida já bastante insustentável muito antes da pandemia.
Me somo a tantos outros que encaram essa expressão – ‘novo normal’ – com bastante incômodo. Entre o novo e o normal, prefiro o novo que, ao menos, poderia trazer aspectos diferentes e inovadores em nossas trajetórias. Independentemente do nome (eu prefiro ‘pós-pandemia, me soa mais honesto), podemos sintetizar em 5 cenários e tendências que vêm ganhando força nos radares de empresas, OSCs e cidadãos. Minha lente aqui é a partir da atuação dos campos da filantropia, sustentabilidade e impacto socioambiental.
1. Investimentos que gerem menos dano ou que fomentem impactos positivos?
Temos visto o ‘boom’ dos investimentos ESG que, às vezes, são tratados como sinônimos de investimento de impacto. Sem entrar nesta discussão conceitual, mas deixando claro que não são sinônimos, o aumento na oferta destes produtos mostra que há aumento na sua procura. Resta indagar se esse aumento na procura se dá porque a agenda sustentável ganhou terreno durante a pandemia ou por conta da queda sucessiva da taxa de juros?
Talvez a questão central que deveríamos fazer é: faz sentido seguir gerando dinheiro sem qualquer contribuição efetiva para uma sociedade mais justa e um planeta mais sustentável?
2. Recorde de doações: sociedade brasileira é solidária?
Temos acompanhado o recorde de doações de recursos – mais de 6 bilhões de reais segundo o belo trabalho do Monitor das Doações da ABCR e parceiros.
Junto com a necessária e óbvia celebração, diversas narrativas e reflexões tentam também concluir que esse recorde é reflexo do quão solidária a sociedade brasileira se revelou, se contrapondo a certa visão de que o Brasil é um país pouco doador.
O ponto central, a meu ver, é se faz sentido resumirmos toda a cidadania em doações. Sem dúvida elas são e serão sempre bem-vindas, mas não deveriam ser o único (e talvez mais celebrado) indicador de solidariedade de uma sociedade. Se quisermos mesmo seguir evoluindo como sociedade/civilização, não seria razoável nos reconciliarmos com a esfera pública, com a dimensão política, com uma cidadania mais ativa? Neste contexto, as doações seriam apenas a porta de entrada para camadas mais profundas de um real engajamento solidário e cidadão?
3. Economia colaborativa ou do compartilhamento?
Quando entregadores de app se mobilizaram em prol de melhor remuneração e de condições mais justas de trabalho, poderíamos ter feito a pergunta: será que isso poderia ser chamado de economia colaborativa?
Tendo a concordar com a tese do livro Uberização de Tom Slee que argumenta que essa economia é muito mais ‘do compartilhamento’ do que ‘colaborativa’. Em outras palavras, ela está mais interessada em gerar negócios e receita a partir do uso compartilhado de bens e serviços do que em fomentar colaboração justa e transformação positiva entre todos os envolvidos nesta cadeia.
Sem dúvida, plataformas, soluções tecnológicas e apps de ‘compartilhamento’ devem seguir em alta no pós-pandemia, e espera-se que busquem endereçar questões sociais e ambientais e de forma mais colaborativa, justa e inclusiva, onde todos – investidores, fundadores, colaboradores, usuários, trabalhadores, sociedade, planeta – possam, efetivamente, se beneficiar destas soluções e não apenas alguns. Isso sim seria um ‘novo normal’ ou uma ‘nova economia’.
4. Quem enfrenta questões socioambientais sairá mais fortalecido?
Sem dúvida, toda a diversidade de organizações e modos de endereçar questões socioambientais – OSCs, negócios sociais, filantropia, etc – mostraram o quão fundamentais são para amenizar impactos negativos que a pandemia tem gerado na sociedade.
Sejam as ‘OSCs e a filantropia ultrapassadas’, sejam as ‘políticas públicas precárias’, sejam os ‘queridinhos’ negócios de impacto social, o fato é que esse conjunto diverso de organizações também têm tido dificuldade para manterem-se vivos e ativos antes durante a depois da pandemia.
Embora o recorde de recursos seja uma realidade, é também realidade que boa parte destes recursos não têm chegado a grande parte das organizações sociais, em especial, para ajuda-las a custear despesas administrativas.
Daí poderíamos supor que essas organizações sairão enfraquecidas após a pandemia, afinal não estariam ‘queimando musculatura’ para amenizar impactos negativos da pandemia? Parte dos grandes doadores que figuram nas listas de ‘grandes benfeitores’ está mesmo preocupada com essa realidade?
5. Preocupação ou vergonha ambiental?
Toda a discussão sobre o desmatamento na Amazônia poderia simbolizar essa tendência, de suposta revalorização da questão ambiental. Talvez pelo fato de que parte do mercado tenha percebido que seguir apostando na degradação ambiental é seguir perdendo dinheiro e encolhendo espaço num mercado que parece se dar conta de que uma transição rumo a opções mais sustentáveis se mostra inevitável. Por outro lado, o contexto atual de aumento no desmatamento na Amazônia, queimadas no Pantanal, mudanças climáticas à olhos vistos, desmontes na agenda ambiental em âmbito nacional e local, etc, parece indicar que a despeito do crescimento da preocupação ambiental há também uma sensação de que esse ‘buraco’ é mais embaixo.
Se quisermos fazer uma transição para modelos mais sustentáveis em nossa sociedade e economia, será fundamental encarar talvez nossa última janela de oportunidade. Isso porém, não se alcança apenas com grandes doações, com manifestações públicas de grandes fundos, com um exército de Gretas. Precisamos de tudo isso e muito mais. Precisamos assumir essa agenda de forma prioritária, acolhendo suas divergências e construindo avanços reais no conjunto da sociedade.
Uma conclusão inconclusiva
Entre o ‘novo’ e o ‘normal’ prefiro ficar com o ‘novo’. Ele, ao menos, tenta nos lembrar da necessidade de repensarmos nosso modo de ser-estar em sociedade. Se há relações de degradação entre nós – seres humanos – o que dizer então nas relações entre humanos e demais seres vivos? A degradação social é apenas a ante-sala da nossa degradação ambiental e climática.
Seguir apostando num ‘novo normal’ ou numa ‘nova economia’ que não assuma essas contradições e os muitos aspectos estruturantes de nossa sociedade, de nossos sistemas políticos, de nossos modelos econômicos, etc, me soa como algo frágil e inócuo. Uma ‘nova economia’ realmente transformadora deveria acolher todos esses aspectos e colocá-los em suas formulações estratégicas. Seguir ignorando ou minimizando e apenas apostando nas soluções de mercado como um passe de mágica para liderar uma ‘nova economia’ me soa como mera intenção de um projeto de transformação inócuo. Nada mais velho e ultrapassado, com rótulo de novo. Talvez mais típico ‘novo normal’.