Quatro pontos para pensar o ecossistema e suas articulações

Temos notado um crescente e suposto consenso em nossa bolha sobre a tese de que “soluções de mercado são mais poderosas e mais escaláveis para resolver problemas socioambientais”. Será? É neste lugar que a agenda de investimentos e negócios de impacto se insere, não sem alguma divergência, evidentemente. É sobre esses dissensos que abordarei.

Na medida em que a, então, agenda da transformação socioambiental se converte em um novo mercado do impacto (ou do investimento de impacto, como preferir), cabe indagar se esta agenda se soma ou se separa do conjunto de atores socioambientais que já buscavam endereçar esses problemas, mas não por meio de soluções de mercado. Neste sentido, a emergência do mercado de impacto criaria uma cisão ou uma especialização à, então, “frente ampla da transformação socioambiental”, que já atuava há tempos global e localmente?

Tenho notado que parte destes atores socioambientais, que já atuava no campo antes da emergência deste mercado, tem encarado essa agenda com certa desinformação ou com certo grau de ceticismo/resistência. Enquanto alguns enxergam o copo meio cheio nesse novo mercado, outros preferem se manter observando a agenda mais à distância.

Mas, nesta encruzilhada de inter-relações possíveis, quais seriam os principais pontos de dissenso que parte destes atores da “frente ampla da transformação socioambiental” traz consigo? Antes de nada, é importante enfatizar que minha intenção, ao propor essa discussão, é tão somente deixar o mais didático possível esses aspectos, de modo a facilitar reflexões sobre o assunto.

Identifiquei quatro pontos de dissenso, os quais apresento a seguir. Vale lembrar que há outros recortes e inúmeras análises possíveis e, desde já, convido o(a) leitor(a) a partilhar suas reflexões sobre o tema.

  1. Conceitual: o “serviço sujo” não recai sobre os investidores de impacto?

Comecemos pelo princípio, ou melhor, pelo conceito de investimento de impacto, como sendo aquele que concilia impactos sociais e/ou ambientais positivos com retorno financeiro. É o famoso “E” ao invés de “OU” que tanto se fala no setor.

OK, mas uma questão pouco debatida passa por quem deve financiar todo o “serviço sujo” imprescindível para que “bons negócios” cheguem aptos a acessar capital de investidores de impacto?

Na literatura sobre o tema, nota-se que filantropia e governo são os atores que têm assumido esse papel, mas poderíamos indagar se esse papel não caberia também aos investidores de impacto? Por que eles só entram no final, quando já há um pipeline “qualificado”?

Assumindo que eles também poderiam dividir esse papel, a pergunta que vem na sequência é: como eles poderiam rachar essa conta e, desta forma, apoiar o fortalecimento do ecossistema de impacto e consequentemente ampliar a geração de pipeline “qualificado”?

Pra fechar esse tópico, tenho adotado comigo mesmo um conceito mais lato sensu de investimento de impacto, considerando que aporte de recursos (não reembolsáveis) para programas de aceleração (geração de pipeline e fortalecimento do ecossistema) é, sim, parte deste conceito e, portanto, deveria ser incluído nesta conta e neste conceito (de investimento de impacto).

2. Narrativa: a mágica de conciliar risco x retorno x impacto

O tripé – risco, retorno e impacto – é largamente utilizado para explicar o eldorado mágico do investimento de impacto. Mas será que essa narrativa não estaria muito vinculada à lógica dos investidores (venture capital, fundos de impacto, entre outros)? Seriam eles os únicos porta-vozes desta agenda? Nesta, não haveria também espaço para outras falas? Se sim, quais seriam essas outras narrativas?

Tem me incomodado o fato de, geralmente, a narrativa carro-chefe sobre esta agenda omitir outras possíveis explicações sobre este tema. É como se não houvesse outras abordagens, visões e sínteses. Pergunte a empreendedores periféricos (ou negócios comunitários), por exemplo, qual a compreensão deles sobre este tema e provavelmente encontrará narrativas distintas desta, com outros elementos e camadas. E por que essas outras narrativas não têm também seu lugar nos feeds, publicações e matérias sobre o tema? Elas até têm conquistado algum espaço, mas ainda de maneira mais marginal.

3. Mercado é sempre solução e não parte do problema?

Parte desta narrativa do tópico anterior também passa por empacotar as “soluções de mercado” como sendo quase sempre as “mais escaláveis”, num certo contraponto (equivocado), ao universo supostamente “ultrapassado” e “limitado” da filantropia e de governos. Na hora de custear o “serviço sujo”, governo e filantropia são bem-vindos e necessários, mas, no momento de apresentar um pacote de “soluções mais escaláveis”, eles mais parecem um “bode nesta sala”.

Outro aspecto que convém refletir é que o mercado – o mesmo que supostamente têm as “melhores soluções” para os problemas socioambientais – raramente é vinculado às causas destes mesmos problemas. Isentá-lo desta co-responsabilidade me soa absurdamente ingênuo, além de desonesto intelectualmente. Com isso, não estou colocando todo o mercado numa vala comum, pois, dentro deste setor, há uma boa diversidade de players e com responsabilidades bastante diferentes entre si.

  1. Governança deste “movimento”: a caneta está nas mãos de quais atores?

Costuma-se utilizar o termo “movimento” ao se referir aos atores e organizações envolvidos neste campo do impacto. Eu, particularmente, gosto do termo e entendo que ele busca fortalecer a ideia de pertencimento e de coletividade a esta agenda. O ponto que pouco se debate diz respeito aos aspectos de governança deste “movimento”, em termos globais e nacionais. Afinal, quem dá as cartas e quem financia esse “movimento”? Se a “ONU” do impacto é o GSG e se o ‘Papa’ é o Sir. Ronald Cohen, como se escuta no setor, a pergunta que fica é: quais outros atores afeitos a esta agenda não estão representados nestas instâncias? Por outro lado, há atores super-representados?

Uma visualização rápida em âmbito global nos permite identificar certa predominância nas características desta representação:
– pessoas brancas,
– majoritariamente homens,
– do Norte global,
– do mercado financeiro, de organismos multilaterais ou de grandes fundações.

No Brasil e em cada país, as respectivas “Forças Tarefas” têm buscado refletir sua diversidade local nos seus Conselhos, o que é bastante louvável. Ainda assim, há atores sub-representados (ou não representados) e outros super representados. Por fim, poderíamos também indagar se este modelo de “representação” seria o mais coerente com a tese de um movimento, mas isso é assunto pra outro momento.

Pra concluir, reafirmo meu engajamento a este movimento. Minha escolha tem sido a de me somar a ele, tentando construir por dentro alternativas que busquem lidar com os dissensos aqui apresentados sempre num horizonte mais inclusivo, de compromisso com a justiça social e climática e com a democratização destes espaços e de suas soluções. Pra alguns, eu seria taxado como estando mais “à esquerda” deste movimento e, pra outros, como um “bode na sala”. Antes de nada, estou de bem com minha consciência e isso é o que segue me movendo tanto pelas bandas do impacto quanto pela tal “frente ampla”.  Afinal, a complexidade dos problemas socioambientais pressupõe uma diversidade de modos, formatos e ferramentas para o seu enfrentamento.

As soluções de mercado são apenas uma delas e não a última bolacha deste pacote.

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Publicado originalmente em AUPA

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