neste novo artigo
procuro debater
o lado B dos recordes
de mobilização de recursos
que temos presenciado
no país
sim, há muito o que celebrar
mas há também
reflexões a serem feitas
boa leitura : )
#impactonaencruzilhada
Temos visto uma intensa mobilização solidária na sociedade brasileira no contexto da covid. Empresas, fundações, cidadãos e governos se esforçam pra promoverem doações e inúmeras ações solidárias, contrapondo certa percepção de que a sociedade brasileira supostamente não seria doadora/solidária.
Recordes de recursos doados têm sido computados e celebrados, com bastante pertinência. Um placar de referência do setor é o Monitor das Doações (https://www.monitordasdoacoes.org.br/) que atualiza diariamente o volume de recursos doados no contexto da crise do covid-19, já passando da casa dos 5 bi de reais neste momento.
Tentando sair de análises e abordagens já disponíveis que celebram e exaltam aspectos positivos desta mobilização, pretendo neste artigo seguir uma linha diferente e problematizar um pouco este fenômeno.
Antes de trazer algumas inquietações, é preciso enfatizar que sou totalmente a favor de muitas iniciativas de doação e, ao mesmo tempo, tenho observado com certa crítica algumas outras que me soam como meras ações de branding e desconexas com a trajetória do setor social. A intenção aqui não é fazer curadoria ou análise destas práticas, mas tentar construir uma análise mais transversal a muitas delas e propor algumas inquietações que nos permitam refletir criticamente sobre o fenômeno.
1. Marcas que têm divulgado e feito grandes doações já eram players ativos nesta agenda de transformação social antes da crise? Se não eram ativas, seguirão sendo no pós-crise? Toparão também financiar todo um ecossistema que possibilita canalizar com mais eficácia essas doações? Ou tenderão a atuarem mais em contextos emergenciais e com ações que gerem ‘burburinho’ midiático?
Aqui vale salientar que para que este setor/ecossistema siga pujante e ativo, é igualmente necessário mobilizar recursos (financeiros e não-financeiros) para organizações sociais que intermediam essas doações, fazendo-as chegar com mais eficácia nas comunidades, e isso é feito de forma frequente e ao longo do tempo e não apenas em situações emergenciais.
2. Por que há pouco recurso sendo doado para suporte institucional destas organizações que têm intermediado doações na ponta? Ao final da crise, essas organizações não estariam num cenário de maior fragilidade, visto que elas têm consumido musculatura para intermediar esse volume recorde de doações?
Pouca gente no setor tem tentado fazer esse debate pra valer, e supor que as próprias organizações que intermediam essas ações o façam é injusto e pode soar como lobby.
3. A suposta colaboração em rede de players (filantropia, empresas, cidadãos) não estaria reforçando certa desigualdade entre eles? Players maiores seguem atuando entre si, algo que já ocorria talvez de forma menos intensa antes da crise, enquanto que medianos e menores seguem mais ‘soltos’ e com menos suporte (coordenação, visibilidade).
Se a intenção é de que a sociedade brasileira como um todo saia mais doadora e solidária no pós-crise, precisaria haver também foco em players médios e pequenos algo menos presente nas narrativas que circulam no momento atual.
Se há também mobilização em rede entre esses players, haveria algum esforço no ecossistema para mapear estas iniciativas? Algum esforço para pluga-las nas redes maiores e mais midiáticas?
4. Players medianos e menores que não dispõem de montantes vultuosos para doar neste momento não ficariam deslocados face à narrativa predominante que destaca ‘cifras vultuosas’ sendo doadas? Em outras palavras: como marcas e players com menores condições de aportar cifras e números vultuosos poderiam agir neste momento e serem percebidos pelo mercado como igualmente relevantes? Não se estaria construindo uma espécie de barreira simbólica que sobe demais a régua para iniciativas solidárias no contexto atual?
5. Haveria uma certa preferência da opinião pública pelas ações de grande vulto? (milhares de reais doados, milhares de donativos entregues e milhares de famílias). Ações solidárias em escalas menores estariam relegadas como sendo secundárias neste momento?
Por exemplo, se uma pessoa mantém o pagamento da diarista sem que ela continue trabalhando, já seria uma ação louvável e possível no contexto de casa família. Se além disso, ela também apoie alguma iniciativa social ao seu redor, já seria mais um passo importante. Transpondo isso para um contexto institucional, temos um leque mais amplo de possibilidades de atuação de uma empresa, que compreendem ações internas e externas. Um exemplo hipotético: de que adianta uma empresa anunciar uma doação milionária de um lado, se do outro ela adota medidas de demissão em massa, pressiona negativamente fornecedores, anuncia em sites de notícias duvidosas, etc? A crise não estaria reforçando coerência pessoal e institucional em nossos modos de atuação?
6. Esforços que tentam construir cenários pós-crise tendem ainda a ser percebidos como ‘inconvenientes’ neste momento? Tendem a ser considerados como sendo ‘pouco solidários’ ou ‘pouco empáticos’ com a realidade assistencial emergencial? Talvez já estejamos vendo uma certa abertura no horizonte a este tipo de abordagem….
Qual a dificuldade de se construir cenários de atuação que rompam com saídas binárias? (ou ajuda a apagar o incêndio ou fica propondo cenários pós-incêndio). A complexidade socioambiental que tanto se discute no setor não exigiria planos de ação também complexos? (doação de cestas básicas e ao mesmo tempo análises de cenários do setor para o pós-crise)
7. Será mesmo que este incremento de doações neste momento vai reforçar a cultura de doação no médio prazo no país? Esse ímpeto se sustentará no pós-crise ou ele tende a escalar somente em períodos de crise emergencial? Passado o incêndio, se manteria o apelo emergencial-assistencial que mobiliza esse montante de doações ou voltaremos a como era antes?
Longe de esgotar o debate e o possível rol de outras inquietações que possam emergir neste momento, a intenção foi tentar compartilhar algumas destas questões com a intenção de que elas gerem incômodos e contribuam para despertar reflexões propícias e necessárias neste contexto dramático em que o setor social se encontra.