O sentido público do Investimento Social Privado

Fábio Deboni[1]

Em 2013 organizamos e publicamos um livro sobre tendência do Investimento Social Privado no Brasil[2], o qual reuniu diversos cases de institutos, fundações e empresas. Uma das reflexões ali tecidas foi na relação entre o investimento social privado (ISP) e as políticas públicas[3]. Resgatamos algumas destas questões e inserimos outras, a partir da conjuntura e do cenário atual que o país atravessa, em especial na relação público-privado e em como é clara a tendência de maior alinhamento entre o ISP e as políticas públicas, nos seus diversos níveis.

Optamos por utilizar como título deste artigo o mesmo slogan do 9º Congresso Gife, reforçando sua tese e ao mesmo tempo enfatizando a relevância do tema na atualidade.

Inicialmente entendemos que é preciso refletir acerca da compreensão senso comum sobre o papel que o “privado” cumpre na relação com a coisa pública. Ainda que este cenário venha sofrendo boas transformações, ainda paira no ar certas características como estas:

  • Certa compreensão de que a atuação privada deve buscar sempre a “neutralidade” política e que, portanto, não deve ser vinculada a este ou aquele governo ou agente político. Aqui há um interessante paradoxo, ao vermos diariamente notícias de relações distorcidas entre grupos econômicos e agentes políticos evidenciando relações que desvirtuam completamente uma atuação em direção ao sentido público do agente privado. Mesmo assim, ainda é muito comum identificar posicionamentos de atores privados que explicitam “neutralidade” com relação a assuntos políticos, desdobrando tal pensamento para as relações institucionais que daí decorrem com governos e com a coisa pública.
  • Inabilidade ou desinteresse para lidar com a agenda política (relacionamento com gestores públicos, com lideranças políticas, parlamentares, vereadores, prefeitos, etc). Vale registrar que embora este tema carregue uma avaliação mais negativa, nem toda aproximação com agentes políticos é sinônimo de uma agenda “negativa”. É preciso reconhecer aqui, que havendo interesse em lidar com a agenda pública é preciso desenvolver habilidades e ferramentas para tal. Não basta apenas a boa vontade no estabelecimento destas relações, é preciso estrutura organizacional e gestão para lidar com este relacionamento. Estaríamos, nós, atores privados, preparados e aptos para lidar com esta situação? Teríamos as ferramentas e os métodos preparados para isto?
  • Experiências anteriores ruins na relação com o poder público, em especial com relação à descontinuidade de projetos em função de mudanças de governo, denúncias de desvios de recursos públicos, lentidão e ineficiência na gestão de ações conjuntas, tornam este relacionamento mais difícil e complicado. Exemplos desta triste realidade são inúmeros e nos fazem refletir sobre como a esfera privada pode contribuir para melhorar esta situação, conferindo maior sustentabilidade institucional a políticas públicas locais, estaduais ou nacionais. Evidentemente não há fórmulas prontas para isso, mas já há boas experiências sobre esta agenda[4].
  • Compreensão de que o governo já arrecada muito com recolhimento de tributos e impostos e que se não dá conta de investir no “social” não é justo que o agente privado o faça. Para além da discussão sobre carga/reforma tributária em nosso país, vem à tona a necessidade de se discutir como os agentes privados (e os cidadãos de um modo geral) podem melhor se engajar no controle social e no acompanhamento da aplicação do recurso público nas políticas públicas e obras de infraestrutura que são realizadas pelo país. Aqui também encontramos um terreno bastante fértil para evoluirmos nosso relacionamento (inicialmente como cidadãos e depois como agentes privados) com a coisa pública. Sabemos quanto cada órgão público tem em seu orçamento e quanto/como o gasta em nossa cidade? Conhecemos iniciativas que monitoram esta realidade? Estabelecemos algum relacionamento com estas iniciativas ou temos sido neutros em relação a elas?
  • Uma decorrência do tópico anterior, diz respeito ao investimento privado que é feito na esteira de políticas públicas, de modo a qualificar, ampliar ou potencializar tais políticas. Sabemos que todo recurso público é carimbado em rubricas, sendo que há itens que não são passíveis de obter investimento governamental. Em diversos destes casos, a atuação do ISP pode qualificar o impacto social num determinado contexto local ou regional. Portanto, o agente privado pode aportar recurso próprio em determinadas políticas públicas resguardando sua autonomia na gestão deste recurso e no relacionamento com os atores governamentais envolvidos. Evidente que há uma desproporção no montante do recurso público com o privado. Não se trata de estabelecer uma comparação de montante, mas sim de ação complementar do ISP visando ampliar impacto social e qualificar a atuação cidadã na esfera pública.

Tais questões são complexas e necessitam ser cuidadosamente analisadas em diferentes contextos e realidades do(s) município(s) onde o ISP atua, na relação com programas estaduais e/ou federais, etc. O que pretendemos chamar atenção é com relação à necessidade de cada staff realizar suas próprias análises de conjuntura para identificar estas questões e os cenários possíveis de inserção da sua própria organização na teia local de potenciais parceiros, em especial de atores governamentais, sempre à luz das diretrizes e políticas federais. Não queremos aqui defender uma opinião de que todos os institutos e fundações empresariais devem, necessariamente, atuar apenas em parceria com organizações governamentais, mas sim focar esta reflexão para esta agenda, à luz da sua relevância na atualidade.

Entendemos que o mote do Congresso do Gife fortalece esta reflexão. Falar sobre “sentido público” inevitavelmente nos levará a refletir sobre o nosso relacionamento com a esfera governamental. Para tanto, identificamos 7 perspectivas que indicam caminhos, a nosso ver, interessantes para pautar uma maior aproximação de institutos e fundações empresariais com a esfera governamental, visando sempre uma maior alinhamento a políticas públicas:

  1. Identificação de agendas “caras” para a sociedade.

Mapear programas de Estado e não deste ou daquele governo e que sejam passíveis de serem compartilhados com o “terceiro setor”, e que estejam em alinhamento à ideologia do instituto e fundação empresarial em questão.

  1. Identificação de agendas com viés mais técnico e menos político

Referimos a agendas que sofram menor interferência político-partidária e que, portanto, sejam menos passíveis de sofrerem descontinuidade a cada troca de governo. Além disso, consideramos relevante direcionar a atuação para contribuir para que estas agendas sejam mais fortemente institucionalizadas.

  1. Conexão com instâncias colegiadas e participativas

Sabemos que os timings de institutos e fundações empresariais são bem distintos de governos, e isso fica bem nítido quando ambos os setores compartilham assento em conselhos de políticas públicas. De todo modo, a atuação nestes espaços pode ser um caminho relevante para um maior fortalecimento de determinadas políticas públicas locais.

  1. Preferência por posicionamentos mais republicanos e institucionais

E, portanto, menos vinculáveis a agendas próprias de determinados partidos ou grupos políticos locais. Exemplo: Bolsa Família. A discussão deveria ser concentrada na definição de iniciativas para incrementar geração de trabalho e renda para pessoas em vulnerabilidade social e econômica e não na atuação em prol deste ou daquele Programa governamental. Por outro lado não se pode atuar de forma totalmente descolada destes programas, pois eles representam iniciativas de políticas públicas que impactam a vida de muitas pessoas onde o instituto ou fundação empresarial atua ou pretende atuar.

  1. Atuação efetiva em parceria só se dá sob determinadas condições de gestão

Não estamos defendendo aqui o simples estabelecimento de parcerias. Temos clareza de que firmar parceria com qualquer organização que seja (governamental ou não) é apenas um meio para se alcançar objetivos mais amplos. De todo modo, este processo de parceria pressupõe, a nosso ver:

  • Planejamento, execução e alcance de resultados num horizonte temporal razoável e acordado entre as partes
  • Que não sirva de plataforma política para determinado grupo ou liderança política
  • Sob mecanismos de formalização (Termos de Parceria, etc), com devida instrumentalização conforme aparato legal
  • Quando for possível realizar uma gestão compartilhada do projeto em questão

Tais medidas são importantes para resguardar o instituto ou fundação empresarial de eventuais mudanças ou descontinuidades políticas, inerentes à organizações desta natureza. Exemplo: um instituto possui um Termo de Parceria com a secretaria de saúde do município e depois de um tempo o atual prefeito é acusado de desvio de recursos públicos. Tendo um Termo documentado e devidamente instrumentalizado, o instituto fica resguardado de qualquer vinculação a tais escândalos.

  1. Alinhamento ao negócio

Evidentemente que as opções anteriores precisam estar alinhadas ao negócio da empresa e/ou à ideologia do instituto e fundação empresarial. Esta, aliás, é uma agenda que vem ganhando bastante relevância na atualidade e já vem sendo tratada em diversos espaços e fóruns.

  1. A atuação do investimento social privado é complementar à do Estado.

Ainda que se trate de uma discussão bastante superada na atualidade, nunca é demais lembrar que o ISP não pretende substituir, anular ou negligenciar o papel do Estado. Ainda que em determinadas situação esta ideia possa nos ocorrer, temos clareza de que isso não é viável nem sustentável. O importante é conseguir calibrar a forma de atuação que permita esta sinergia de atuação, o que, cá entre nós, é um desafio diário e permanente. Por outro lado, vamos lembrar que a discussão sobre escala também vem ganhando espaço na atualidade e que, ela ruma em direção ao alinhamento às políticas públicas. Caímos, portanto, novamente na trincheira do Estado.

 

Considerações Finais

  • Relação entre institutos e fundações empresariais e o Estado é complexa e multifacetada. As considerações tecidas neste artigo não pretendem dar respostas finais ao tema, muito menos esgotar o debate. Devem ser consideradas apenas como uma reflexão dentre muitas outras possíveis.
  • Não há soluções mágicas para lidar com esta relação. Alternativas caso a caso precisam ser pensadas e definidas. Já há certo acúmulo de experiências neste sentido e a tendência é que elas se ampliem pelo país e pelas áreas temáticas.
  • A relação entre institutos e fundações empresariais e governos, como vimos, é uma tendência que identificamos e com a qual lidamos há algum tempo. Apesar disso, não deve ser encarada como sendo algo que todos os institutos precisam trilhar. Nosso foco aqui foi o de destacar possibilidades de atuação conjunta num campo ainda pantanoso e instável.
  • A oportunidade que o Congresso Gife nos apresenta de reconstruir reflexões sobre o sentido público do investimento social privado possibilitará ampliar o debate sobre esta agenda e apontar novos caminhos para o seu fortalecimento.

 

[1] Gerente Executivo do Instituto Sabin. O Instituto Sabin é associado ao Gife e coordena juntamente com a Fundação Vale, a Rede Temático de Saúde. Vem atuando no campo dos negocios de impacto em Saúde, em parceria com a Artemísia e a ANDE. [email protected] / www.institutosabin.org.br

[2] Investimento social privado no Brasil: tendências, desafios e potencialidades /organização Fábio Deboni. — 1. ed. — Brasília, DF : Instituto Sabin, 2013.

[3] O artigo se intitulava: “Porque não em parceria com os governos?”.

[4] Destacaria as reflexões que a Rede Temática de Políticas Públicas do Gife vem construindo. Saiba mais em: https://gife.org.br/redes-tematicas/investimento-social-e-politicas-publicas/

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